Uvinha e Ricciardi- ‘Uma lei voltada à atividade musical nos cassinos deveria incentivar a arte popular brasileira’

O jornalista Luiz Carlos Prestes Filho segue apresentando suas reportagens relacionadas ao tema da legalização do mercado de jogos, apostas e cassinos no Brasil.

Dessa vez, Prestes Filho realizou uma entrevista com o professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), Ricardo Ricci Uvinha e o professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP), Rubens Russomanno Ricciardi.

Ambos defenderam que a aprovação das práticas de apostas, além de estimular a economia nacional, também ajudaria significativamente aos segmentos artísticos regionais. “Entre estes, o nosso Carnaval e a Festa Junina”, frisaram na entrevista publicada no site Tribuna da Imprensa Livre.

Na visão dos professores, existe muito potencial para a realização de parcerias artísticas e promoção de jovens talentos nos eventos em uma eventual retomada dos cassinos. Ao sair da condição atual de ilegalidade, os “cassinos poderiam simbolizar uma importante aproximação com o contexto universitário por conta dos cursos de Lazer e Turismo, Música e Sistemas de Informação, entre outros”.

Entrevista com os professores Ricardo Ricci Uvinha e Rubens Russomanno Ricciardi

Luiz Carlos Prestes Filho: Cassinos, entretenimento, lazer e música a relação é histórica no Brasil?

Uvinha e Ricciardi: A música deve ser sempre executada com músicos no palco e ouvintes na plateia, porque nenhuma forma de reprodução mecânica substituirá a apresentação musical ao vivo. Antes de sua proibição, em 1946, os cassinos no Brasil contemplavam uma alternativa importante para a atividade musical. Como dizia Aristóteles, “a música nos dá prazer e nos faz pensar”. A condição de entretenimento da arte não pode ser ignorada, ainda mais quando viabiliza espaços permanentes para o mundo do trabalho em música.

A tradição dos cassinos costuma contemplar espaços (salas ou teatros) com amplo palco para apresentações musicais, o que viabiliza formações instrumentais e vocais, muitas vezes sinfônicas, com mais de 11 músicos, permitindo, assim, a atuação coletiva e conjunta de dezenas de músicos ao mesmo tempo. Há notícias de que as antigas orquestras, atuantes em cassinos no Brasil, chegavam a ter até 60 músicos. Portanto, é uma alternativa fecunda não apenas para compositores, arranjadores e maestros, mas para os músicos instrumentistas e cantores, os quais sempre são em maior número, para que tenham novas possibilidades em seu mundo de trabalho. A relação entre lazer e cassinos é sim histórica no Brasil.

A atividade, hoje classificada como “jogos de azar”, constituiu importante elemento de entretenimento no Brasil Império, sendo formalmente interrompida durante o governo do presidente Eurico Gaspar Dutra. Até então, empreendimentos famosos foram constituídos para servir de alicerce ao desenvolvimento do entretenimento por tal modalidade de jogos, sendo um exemplo emblemático o Palácio Quitandinha, construído em 1944, em Petrópolis, que ainda hoje simboliza importante atrativo turístico da Região Serrana fluminense.

Luiz Carlos Prestes Filho: Seria importante, com a regulamentação de cassinos e bingos no Brasil, valorizar as atividades artísticas e dentro dos estabelecimentos?

Uvinha e Ricciardi: A exemplo do que já ocorre em cassinos localizados nos navios que navegam em águas brasileiras (e que são autorizados formalmente a funcionar, atraindo um grande interesse por parte de turistas brasileiros), as atividades artísticas podem se consubstanciar como importante elemento atrelado aos jogos de azar, potencializando a tão almejada experiência de lazer e entretenimento. Grandes hotéis brasileiros, como o Copacabana Palace, incentivavam a atividade e recebiam constantemente hospedes ilustres, como Frank Sinatra.

Há relatos históricos de grandes performances de Carmem Miranda e Ary Barroso, entre outros, nos palcos do Casino da Urca, antes da proibição da atividade no país, em meados de 1940. A regulamentação dos cassinos no Brasil, além de atrair orçamentos significativos para as cidades-sede destes empreendimentos, poderia se tornar uma opção relevante de entretenimento no lazer da nossa população.

Luiz Carlos Prestes Filho: O conteúdo musical brasileiro deveria ter prioridade nos cassinos e bingos?

Uvinha e Ricciardi: Por certo, poderia haver lei que contemplasse os repertórios musicais brasileiros enquanto prioritários, com música ao vivo. Importante valorizar os repertórios brasileiros não apenas da atualidade, mas de todas as épocas. O Brasil tem rica produção musical (de compositores brasileiros) desde o período colonial, nos mais diversos gêneros: música sacra, música militar, ópera, música sinfônica e de câmara, tanto instrumental como vocal (com conjuntos de câmara e formação orquestral-sinfônica, envolvendo também cantores solistas e corais).

O Brasil possui ainda repertórios musicais populares os mais variados, como o batuque, a modinha e o lundum, desde o século XVIII. Posteriormente, desde o final do século XIX, novos gêneros musicais surgiram, como o samba (inicialmente só instrumental, depois vocal), dobrados de banda, o chorinho, o tango brasileiro, o maxixe, o frevo, moda de viola caipira, repentistas, bandas de pífaros, a valsa brasileira e a bossa nova etc.

Toda essa rica produção histórica pode ser revigorada com leis especiais para a atividade musical nos cassinos. Importante, portanto, que essa alternativa profissional não se restrinja a DJs, mas que possa viabilizar e mesmo fomentar o trabalho dos músicos de verdade, atuando ao vivo nos palcos dos cassinos.

Luiz Carlos Prestes Filho: Seria importante ter uma reserva de mercado para artistas brasileiros nestes estabelecimentos?

Uvinha e Ricciardi: Antes de mais nada, o mais importante seria assegurar uma definição preliminar de indústria da cultura. Como exemplos de indústria da cultura, temos hoje os seguintes gêneros: apresentadoras-cantoras de programas televisivos infantis, axé, gospel, disco, funk, hip-hop, padres ou pastores cantores, pop, rap, rave, rock, sertanejo universitário, techno e world music etc. Desse modo, temos que separar, de um lado, a indústria da cultura e, de outro lado, a arte e a arte popular. Uma lei voltada à atividade musical nos cassinos deveria incentivar a arte e a arte popular brasileira, mas não a indústria da cultura.

O processo será malogrado se houver uma hegemonia da indústria da cultura (com Djs e shows pirotécnicos kitsch, sem elementos artísticos), na hipótese de retorno dos cassinos. Por kitsch, entendemos o gosto mediano (mau gosto) em estilo ou produto com pretensão artística, o qual procura encarnar suposto valor de tradição cultural que não existe e, assim, não passa de simulacro, isto é, uma imitação estéril, de obra de arte.

Em geral, está emparelhado com efeito pirotécnico ou tecnológico (e cada vez mais o kitsch adquire uma configuração tecnológica), e sempre reiterado com clichê, lugar-comum, banalidade, estereótipo ou chavão, ou seja, repetição padronizada sem proposta reveladora ou inovadora na linguagem, invariavelmente de cunho sentimentalista, sensacionalista, imediatista ou oportunista. Com o fim do folclore e das culturas populares, cultura e kitsch passaram a ser um só. Há que se pensar em mecanismos para que a arte e a arte popular estejam fomentadas.

Nossa proposta conceitual para a definição do popular, portanto, difere-se sobremaneira dos padrões da indústria da cultura. Compreendemos por arte tanto o amplo repertório de concerto (operístico, camerístico etc.) como também as artes populares ou folclóricas, ou seja, as manifestações populares independentes dos sistemas de produção industrial – não nos referimos aqui à fabricação e venda de fonogramas, mas sim, ao processo de elaboração poética (que vem de poíesis, o processo de elaboração inventiva de obra de arte, com suas propostas de linguagem), com critérios voltados aos parâmetros e ao tratamento dos materiais musicais.

Os materiais musicais são os componentes da poiesis: parâmetros (altura, contornos melódicos, fraseado, articulação, duração, métrica e ritmo, agógica, intensidade, timbre e demais elementos expressivos) e tratamento (harmônico, contrapontístico, textural, estrutural, orquestral, elementos de repetição, contraste ou variação etc.), tudo isso em meio às indissociáveis relações entre forma e conteúdo, pois o que importa é a linguagem como um todo, seu artesanato, sua singularidade inventiva e reveladora, sua exposição de mundo.

Por sua vez, enquanto sistema ideológico, a indústria da cultura surgiu no século XX com as novas tecnologias de comunicação de massa, impondo produtos audiovisuais e best-sellers fabricados em série e padronizados de acordo com o perfil e classes de consumidores passivos e desprovidos de espírito crítico, garantindo a sobrevivência cultural hegemônica do capitalismo. Tal como uma igreja que diferencia fiéis de hereges, a indústria da cultura impõe mecanismos brutais de adequação e padronização.

Os hereges excluídos mal sobrevivem em seus contextos sociais. Tomemos o cuidado, contudo, de não generalizar, a priori, o cinema, o rádio, a televisão, a internet e nem mesmo a indústria fonográfica (ou qualquer outra possibilidade de mercado) enquanto veículos demonizados. Os veículos em si podem ser utilizados das mais diversas formas. Nosso estudo sobre a indústria da cultura tem como foco o modo hegemônico como este sistema ideológico opera esses veículos, por meio de uma poíesis (composição, invenção da obra) redutiva, submetida a priori ao marketing, o que corrompe sua liberdade.

Neste sentido, propomos uma perspectiva teórica que não consta na Escola de Frankfurt, porque analisamos a indústria da cultura com foco justamente na poíesis (e não pela questão sociológica do consumo ou por seu caráter comercial). É a poíesis (a elaboração e tratamento dos parâmetros e materiais musicais, tal como descritos acima), adentrando em problemas técnico-artísticos da música, ou seja, a questão da linguagem musical, que decide sobre a definição do universo musical, se restrita à produção industrial, ou se contempla elementos de fato inventivos.

A poiesis (produzir, inventar, compor obras de arte) ou poética (ou ainda poética, uma melhor adaptação de poiesis) é a concepção (projeto, programa, manifesto normativo) e a produção (composição, realização da escritura ou Gestaltung) da obra de arte. A poética diz respeito ao estilo de um poeta, de um autor teatral, literário ou libretista, de um compositor, de um artista visual, ou de um coreógrafo na dança, do arquiteto etc. Como vimos, o conceito é válido não só para a poesia, mas também para todas as artes.

Pretendemos, assim, deslocar o foco da análise, não apenas reconhecendo a questão ideológica, mas também pontuando a linguagem artística por meio dos parâmetros musicais. Não consta da Escola de Frankfurt a questão do esquecimento da poíesis, tal como propomos aqui. Não é nossa intenção discutir o que seja belo ou feio. De acordo com Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, se “bonito é aquilo que a câmera sempre reproduz”, então “o gosto dominante relaciona seu ideal a partir da propaganda, da beleza utilitária.

Assim, ao final, realizou-se ironicamente a concepção socrática: o belo é o útil”. Tal como os autores da Escola de Frankfurt, não afirmamos que a indústria da cultura, que pode ser tanto bela quanto útil para tantos, seja ruim, e que a arte seja boa. Apenas afirmamos que na indústria da cultura há uma “liberdade para o sempre igual”, e, na arte, bem como na arte popular, a possibilidade de ensaios para a diferença e singularidades. Também não devemos demonizar a diversão. Afinal, uma diversão pode ser prazerosa, bem como desde sempre a arte também contempla a condição de entretenimento e prazer.

Aliás, se não for também entretenimento nem prazer, não poderá ser arte. Daí o equívoco dos alemães quando dizem U-Musik (música de entretenimento) para a música da indústria da cultura, como se a música enquanto arte não pudesse também ser de entretenimento, como se a música de concerto e a música popular fora da indústria da cultura não pudessem ser divertidas, devendo ser sempre apenas E-Musik (música séria) – algo que boa parte da poética dos grandes compositores e mesmo das tradições populares de todos os países vêm desmentindo há séculos. A diferença é que a grande arte, além de entretenimento, diversão e prazer, também nos faz pensar, revelando singularidades que transcendem toda datação. Por sua vez, a arte e a arte popular sempre se influenciam mutuamente.

Como dizia Bertolt Brecht, “as obras internacionais são as obras nacionais, e as obras nacionais assimilam as inovações internacionais”. Propomos também a teoria do afastamento gradativo da indústria da cultura em relação à arte. Se nos tempos de seu surgimento, no início do século XX, a indústria da cultura ainda se atrelava à arte e às manifestações populares, ocorreu desde então um processo gradativo e constante de afastamento, tanto que passado já quase um século, a indústria da cultura impõe de modo soberano seus próprios sistemas e já prescinde quase que totalmente da arte ou de qualquer outro elemento cultural próprio de um povo ou de uma comunidade.

Os gêneros da indústria da cultura não surgem mais por meio da inventividade deste ou daquele artista, ou desta ou daquela comunidade em suas relações culturais singulares, mas sim são frutos das arbitrariedades do marketing que almeja um público alvo de consumidores passivos, determinado de momento (daí também seu caráter efêmero), sempre uma “tribo” devidamente uniformizada e domesticada. Há que se verificar, portanto, enquanto critério, se há ou não cada vez menos elementos artísticos e verdadeiramente populares na indústria da cultura. Neste sentido, é possível que a crítica de Adorno se confirme não só válida e vigente, como sua atualidade pode ser constatada ainda cada vez mais de um modo drástico.

Como dissemos, o que define a linguagem musical é sua poíesis, a liberdade inventiva, o tratamento diferenciado nos parâmetros e materiais musicais. Talvez a distinção entre indústria da cultura e a arte seja mais fácil de se efetivar. Contudo, a dificuldade se torna maior quando procuramos diferenciar indústria da cultura (produção massificada e padronizada por meio de um marketing que exclui singularidades regionais) da música de fato popular e folclórica (manifestações próprias e singulares de determinado povo ou comunidade, geralmente com características regionais).

Aproximamo-nos, assim, da análise de Fredric Jameson sobre a contemporaneidade, caracterizada pela “industrialização da agricultura, ou seja, a destruição de todos os campesinatos tradicionais; e a colonização e a comercialização do inconsciente ou, em outras palavras, a cultura de massa e a indústria da cultura”, aniquilando parte importante da música popular e folclórica em todo mundo. Muito mais que no caso da música enquanto arte, cujos desdobramentos históricos permanecem em grande parte independentes (hoje por conta das grandes universidades em todo o mundo, que garantem liberdade aos seus artistas professores), os empreendimentos da indústria da cultura acabam prejudicando sobretudo as manifestações verdadeiramente populares.

Não é por menos, a indústria da cultura faz de povos de todos continentes não só analfabetos em arte, mas também impede que haja pensamento crítico.

Luiz Carlos Prestes Filho: Em Las Vegas, Macau, Monte Carlo, Punta do Leste e em Estorial as atividades artísticas tem um papel importante. Como seria no Brasil. Festas como o carnaval e festas juninas poderiam fazer parte do calendário/imaginário de cada estabelecimento?

Uvinha e Ricciardi: As mencionadas cidades são conhecidas mundialmente pela qualidade de seus cassinos e por atrair um grande número de turistas que anualmente as visitam, gerando divisas e oportunidade de empregos numa notável cadeia produtiva associada ao turismo, ao lazer e ao entretenimento.

Caso aprovada a atividade no Brasil, além de alavancar a economia como mencionado, poderia auxiliar de forma substancial na promoção de atividades artísticas locais e regionais, entre estas o nosso Carnaval e a Festa Junina. Demais atividades de lazer associadas à dança, ao teatro, às artes marciais, aos desfiles de moda e ao circo poderiam complementar este rico cardápio de entretenimento para o frequentador do cassino em localidades pelo Brasil.

Luiz Carlos Prestes Filho: As plataformas nacionais de jogos de cassinos e bingos eletrônicos poderiam dar potência para divulgar a música brasileira?

Uvinha e Ricciardi: Sim, caso haja uma definição precisa de indústria da cultura e, além disso, uma diferenciação ainda mais clara entre indústria da cultura e arte popular.

Luiz Carlos Prestes Filho: Será que as universidades brasileiras poderiam aproveitar os cursos de matemática e computação, design e música para realizar pesquisas sobre softwares para a industria de jogos?

Uvinha e Ricciardi: Os departamentos de música nas universidades brasileiras formam centenas de jovens músicos, ainda mais hoje com a proliferação de corais e orquestras acadêmicas jovens em todo o Brasil. Por certo há potencial de convênio e também de participação desses jovens talentos nos eventos musicais dos cassinos. Uma vez aprovada a atividade no Brasil, saindo do contexto atual de clandestinidade, os cassinos poderiam simbolizar ainda uma importante aproximação com o contexto universitário por conta dos cursos de Lazer e Turismo, Música e Sistemas de Informação, entre outros.

Entre os alunos estudantes desses cursos, boa parte seria diretamente beneficiada, com a possibilidade não somente de estágios (e uma futura colocação profissional), mas também se torna um interessante locus para o desenvolvimento de pesquisas com o tema central do entretenimento e suas implicações artísticas.