Artigo do Estadão contesta interferência da União nas loterias estaduais

A Secretaria de Avaliação, Planejamento, Energia e Loteria do Ministério da Economia (Secap-ME) anunciará ainda em janeiro normas para apostas e loterias estaduais. Uma delas é a inserção de medidas para evitar apostas de outros entes da Federação.

Uma das metas da Secap-ME é impedir que as loterias estaduais afetem o rendimento das modalidades federais, que movimentam entre R$ 4 bilhões e R$ 10 bilhões, só que essa portaria pode ser contestada na Justiça.

O assunto foi destrinchado por Rogério Tadeu Romano, procurador regional da República aposentado, advogado e professor de processo penal e direito penal em um artigo publicado na coluna de Fausto Macedo, no Estadão.

A primeira legislação sobre as loterias no país, o Decreto 21.143, de 10 de março de 1932, frisou que “são consideradas como serviço público as loterias concedidas pela União e pelos Estados” (art. 20). O dispositivo previa não somente o caráter público da prática, bem como a possibilidade de criação tanto no plano federal quanto estadual.

Em 1941, uma nova reforma foi feita com Decreto-Lei 2.980, de 24 de janeiro. A novidade foi a liberação para exploração indireta, “os governos da União e dos Estados poderão atribuir a exploração do serviço de loteria a concessionários de comprovada idoneidade moral e financeira” (art. 2º).

Em 1961, a União Federal, com o Decreto 50.954, de 1º de julho, tomou conta da exploração da loteria federal, acabando com a forma de concessão. O serviço passou a ser realizado pelo Conselho Superior das Caixas Econômicas, em colaboração com as Caixas Econômicas Federais.

Mudança histórica na legislação das loterias do Brasil

Todavia, o Decreto-lei nº 204/67, corresponde a uma mudança drástica conforme o seu artigo 1º: “A exploração de loteria, como derrogação excepcional das normas do Direito Penal, constitui serviço público exclusivo da União não suscetível de concessão e só será permitida nos termos do presente Decreto-lei”.

A definição do setor lotérico no país se baseia no Decreto-Lei nº 204, de 27 de fevereiro de 1967, que determinou, no seu Art. 1º: a exploração de loteria, como derrogação excepcional das normas do Direito Penal, constitui serviço público exclusivo da União não suscetível de concessão e só será permitida nos termos do presente Decreto-lei.

Esse decreto tornou o serviço de loterias em algo exclusivo da União, mas oportunizou que as loterias estaduais seguissem, indefinidamente a partir das normas anteriores. Entretanto, esse decreto vetava a criação de novas modalidades estaduais, ao passo de permitia a manutenção das já existentes.

No entanto, a igualdade entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios está na base de um modelo de federação. Até então, o monopólio para lidar com loterias e sorteios ficava reservada ao Governo Federal, mas essa condição foi revertida no Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 2847-21 e 2948-72.

O STF e as loterias estaduais

O STF definiu, no dia 20 de setembro do ano passado, que o Governo Federal não possui exclusividade para o setor lotérico. De maneira unanime, os ministros compreenderam que os estados, mesmo que não tenham competência legislativa sobre a questão, podem explorar essas modalidades.

O relator, ministro Gilmar Mendes, pontuou que a exploração dos jogos lotéricos contou com caráter público e que a legislação não pode colocar qualquer ente federativo ‘restrição à exploração de serviço público para além daquela já prevista no texto constitucional’.

A determinação ocorreu no tocante a duas ações que solicitavam a corte que definisse que artigos do Decreto-lei 204/1967 que tratam da exclusividade da União para explorar loterias não foram englobados pela Constituição de 1988.

Já outra ação que versava se as medidas do Estado do Mato Grosso que regulamentam a exploração das lotéricas entravam em conflito com a competência da União para legislar sobre consórcios e sorteios e acabou considerada improcedente. Entendeu-se que o Governo não tem exclusividade na exploração, mas possui competência para legislar sobre a matéria.

A loteria é considerada prestação de serviço público, cuja receita sempre foi repassada para cobertura de programas sociais e ações destinadas para o cidadão, ao contrário de outras práticas privadas que visam lucro. Ou seja, a loteria é um serviço público formal.  

O ministro Roberto Barroso, declarou, em parecer: “É possível afirmar, assim, em linha de coerência com a posição doutrinária prevalente, que no Brasil a atividade de exploração de loterias é qualificada desde muito tempo, e até o presente, como serviço público”.

Competência dos estados

Portanto, se a Constituição, ao longo da história, não repassou essa competência ao Governo Federal, e, se por outra questão, em nenhum ponto impede a loteria estadual, a conclusão, é a de que os Estados possuem todo o direito e a capacidade de organizar e estruturar as suas loterias, como um serviço público.

Afinal, a Constituição não proíbe o funcionamento dessa modalidade. Inicialmente, porque não repassa esse serviço á União, de maneira exclusiva. Segundo, porque não coloca impedimento, de modo expresso ou simplesmente direto, a existência dos jogos estaduais. Ou seja, os estados estão liberados a criar esse serviço e explorar da maneira que desejarem.

Portaria e as suas complicações

A portaria do Governo Federal que define normas para restringir o jogo pode ser inviável, uma vez que tende a contrariar a Constituição. Isso porque a portaria é uma norma típica secundária que não tem como tomar o lugar de uma lei, norma típica primeira. Uma portaria não pode definir medidas gerais.

Sendo assim, uma portaria de ministério não faz parte do processo legislativo disciplinar da constituição. Se trata de um ato normativo interno visando organizar os serviços realizados por servidores de determinado estabelecimento. Não concede direitos, nem define punições e tampouco responsabilidades.  

Não pode uma lei, e ainda menos uma portaria, tirar a competência de Estados e do Distrito Federal em relação a serviços públicos que não foram diretamente vinculados a Governo Federal a partir do artigo 25, parágrafo primeiro, da Constituição.

Essa proibição descrita no artigo 1º do Decreto-lei nº 204/67 é totalmente inócua, uma vez que levaria em consideração modificar a distribuição de competências estatais, o que apenas pode ocorrer por regra constitucional. Muito menos, uma portaria, poderia ter impacto sobre a matéria.