Após décadas desde sua proibição os jogos de apostas nunca estiveram tão próximos de uma segunda regulamentação no Brasil. O setor é um dos que mais cresce em âmbito mundial, sendo destaque em todos os continentes por conta de seu potencial em gerar receitas expressivas para suas respectivas regiões.
Mas para um segmento de apostas forte é necessário uma uma estrutura organizada e focada no funcionamento deste mercado. O Estado brasileiro está cada vez mais interessado nos “serviços de jogos” e seus benefícios para todo o país.
O ConJur publicou recentemente um artigo – escrito por Cristiano Heineck Schmitt – que relata o papel do Estado como fornecedor e explora algumas questões do setor iGaming no Brasil.
Confira na íntegra o artigo sobre os jogos de apostas no Brasil
1) Breve panorama dos jogos no Brasil
A exploração de jogos de cartas, cassino, corridas de cavalo, loterias, apostas esportivas, sempre movimentou elevadas cifras, atraindo interesses legítimos, ou até ilegais, sendo que esses últimos redundam em sonegação de impostos, violência, lavagem de dinheiro, manipulação de resultados, etc. Mas o fato é que, por proporcionar lucros elevados ao administrador do jogo, o Estado também se interessou pelo “serviços de jogos”.
No Código Civil, Lei nº 10.406/02, o contrato de jogo e aposta é tratado de forma incipiente entre os artigos 814 a 817. A reduzida devoção legislativa gerou a figura do jogo tolerado ou permitido, isto é, aquele que não possui uma norma própria, mas também não é vetado pela legislação penal, por exemplo, que reprime jogos de apostas.
O Código Civil brasileiro apenas gerou alguns contornos de legalidade para modalidades esparsas, de apostas esportivas, não servindo para abranger a grande parte das operações de jogos no país. É um negócio jurídico incapaz de ser exigido judicialmente, mas que, uma vez pago, tornava-se irrepetível.
No conjunto de jogos de apostas ditos proibidos no Brasil, a respectiva prática é tipificada como a contravenção penal, sendo prevista no artigo 50 da Decreto-Lei nº 3.688 de 1.941, Lei das Contravenções Penais, que expõe o que segue: “Estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele: Pena — prisão simples, de três meses a um ano, e multa, de dois a quinze contos de réis, estendendo-se os efeitos da condenação à perda dos moveis e objetos de decoração do local”.
Ainda, consoante o §2o da referida norma, “incorre na pena de multa, de R$ 2 mil a R$ 200 mil, quem é encontrado a participar do jogo, ainda que pela internet ou por qualquer outro meio de comunicação, como ponteiro ou apostador”. E esse mesmo artigo 50, em seu §3º, estatui o que se consideram como sendo jogos de apostas: “a) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte; b) as apostas sobre corrida de cavalos fora de hipódromo ou de local onde sejam autorizadas; c) as apostas sobre qualquer outra competição esportiva”.
Obviamente, a legislação brasileira não pune nem proíbe o todo o jogo de azar. Há uma escolha acerca de modalidades que serão objeto de repressão estatal. E essas escolhas são, na prática, específicas, visto que o texto da lei penal é generalista. Assim, no Brasil, temos os “Jogos de Azar Legais” e os “Jogos de Azar Ilegais”.
Um jogo que consta como um dos mais praticados, mesmo que se realiza à margem da lei, é o “jogo do bicho”, o que mostra que a pena de restrição de liberdade, prevista ao jogo ilegal, é pífia, assim como á a persecução penal em torno do mesmo. Não existem dados corretos, até porque o jogo do bicho é uma prática ilegal, de forma que seu faturamento não é declarado. Em 2014, a Fundação Getulio Vargas estimara esse tipo de aposta tenha arrecadado de R$ 1,3 bilhão a R$2,8 bilhões, cifras que alguns consideraram subestimado.
O cassino, por exemplo, que já fora permitido no Brasil, foi proibido por força do Decreto-Lei 9.215, de 30 de abril de 1946, assinado pelo presidente Eurico Gaspar Dutra. À época (e talvez até hoje ainda se conserve essa visão), entendia-se que a prática do jogo com apostas em dinheiro era moralmente degradante ao cidadão. Talvez um dos maiores motivos de proibição do jogo no Brasil era a ideia do vício que poderia ser gerado pelo mesmo, fazendo do indivíduo um sujeito patológico, que sacrificaria todo o seu patrimônio e o da sua família em apostas.
É estranho entender que alguém pudesse sofrer uma degradação pessoal jogando em cassinos, bingos, mas manteria sua dignidade intacta se toda a semana fizesse apostas em loterias estatais. A presença Estado, nesse sentido, beatificaria o jogo no Brasil, o que na verdade é um pensamento mágico típico de conto de fadas.
O próprio Estado, nas suas três esferas de atuação, é um exímio explorador de jogos de apostas. A Caixa Econômica Federal, maior banco público brasileiro, que tem a forma de empresa pública, pertencendo à Administração Indireta Federal, explora vários concursos de apostas, e faz isso ao longo de várias décadas. Nesse sentido, a título exemplificativo, tem-se o caso da Mega-sena, Lotofácil, Quina, Lotomania, Timemania, Dupla Sena, Loteca, Dia de Sorte e Super Sete.
Esse conjunto de possibilidades, somado aos entraves para a prática do jogo no Brasil, deixa bastante perceptível que o Estado quer a supremacia de um mercado amplamente lucrativo. Tanto é lucrativo o setor, que em 2021, a arrecadação da Caixa Econômica chegou a R$ 18,5 bilhões em todas as modalidades de jogos lotéricos.
Como ressalta Aloísio Zimmer Júnior, “cada espécie de jogo de azar tem, no Brasil, sua própria história mais ou menos conturbada”. Aponta o autor que, no plano das loterias, uma primeira tentativa de sistematizar uma legislação que era esparsa, adveio em 1932 com o Decreto 21.143. A perspectiva, na época, era combater as organizações criminosas que se formavam com a exploração do jogo ilegal. Assim, as loterias foram classificadas pelo referido Decreto (artigo 20), como um serviço público concedido pela União e pelos Estados. Anos mais tarde, o Decreto nº 204/67, ainda vigente, garantiu à União a exploração exclusiva das loterias, restando aos estados apenas as loterias que já fossem operantes.
As loterias estatais brasileiras consumem mensalmente parte do orçamento das famílias brasileiras, com renda superior a dois salários mínimos, gerando uma conduta quase que automática, que perdura praticamente a vida inteira do sujeito, que acredita que algum dia será contemplado. Basicamente, é um costume social do brasileiro apostar em loterias da Caixa Econômica Federal.
Portanto, uma conclusão bastante evidente é que, o Estado brasileiro é um fomentador de jogos de apostas. E não é porque o Estado explora jogos de apostas que isso torna o jogo mais legítimo ou benéfico socialmente. Então, é estranho ver-se o aparelho estatal reprimindo o jogo de azar quando ele próprio recebe valores explorando essa atividade. Com o clássico verbete, o Estado brasileiro diz, “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”.
2) Dos jogos legais: apostas esportivas de cota fixa
Com a disseminação dos jogos de apostas on line, cada vez mais as empresas do setor investem de forma maciça em aprimoramentos e publicidade. São diversos players no mercado, com marcas conhecidas, que costuma ocupar espaços de publicidade em campos de futebol e nas mídias em geral, patrocinando eventos entre outros.
Com a sanção da Lei nº 13.756/18, embora não fosse ainda uma abertura total ou ampla à legalização de jogos de apostas não estatais, pode se imaginar a convivência com uma certa regulamentação das apostas esportivas no Brasil. A referida lei previu como meio possível de aposta a chamada quota fixa. Consoante o artigo 29 da referida Lei, resta criada a modalidade “lotérica”, sob a forma de serviço público exclusivo da União, denominada apostas de quota fixa, cuja exploração comercial ocorrerá em todo o território nacional. Em termos práticos, “quota fixa” significa que o apostador sabe quanto vai receber se acertar, e o prêmio já é pré-definido pela empresa de apostas, que calcula a probabilidade de um resultado acontecer.
A perspectiva com a Lei nº 13.756/18, é que as casas de apostas pudessem se estabelecer no Brasil também, gerando divisas à nação. Mas a Lei nº nº 13.756/18 determina que tais fornecedores não tenham pontos de venda físicos no país, e que somente possam operar por meio de sites hospedados em domínios não registrados no Brasil.
Essas apostas em jogos esportivos, online, com cota fixa, detém então um atributo de legalidade no Brasil, desde que aqui não possuam sede. Para se ter uma ideia, a receita de jogos de apostas nos Estados Unidos superou R$ 315 bilhões em 2022, segundo um relatório da AGA (American Gaming Association), a associação americana das empresas de jogos. Logicamente, quem não quer uma fatia deste grande bolo?
3) O Estado fornecedor de jogos
O artigo 6º da Constituição dispõe que são direitos sociais “a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”. É claro que o ato de apostar traz consigo um momento de desconexão com os problemas diários, que pode ser visto como atividade de lazer, mas não seria esta a natureza contemplada do lazer pelo referido dispositivo. O mesmo, no caso, é voltado a atividades culturais, locais para a prática de esportes, praças, etc. O jogo de apostas, por outro lado, exige que o sujeito pague diretamente cada ação que ele realiza, ou seja, o acesso não é universal, nem gratuito, e de regra, gera prejuízo econômico.
Por outro lado, para o que seria atingir o bem comum, nada obsta o Estado buscar fontes de recurso atuando como um agente privado. Portanto, de olho no que o mercado através de empresas de apostas esportivas em cotas fixas tem gerado, cresceu o interesse dos gestores municipais e estatais em acessar uma fatia de ganhos gerados pela atividade de apostas.
Em Porto Alegre, por exemplo, na data de 17 de agosto de 2022, fora sancionado pelo prefeito municipal o projeto de lei que autoriza a prefeitura a criar o serviço público de loteria, dando surgimento à Lei nº 13.215/22, fazendo nascer a “Loteria de Porto Alegre (Lopa)”. O objetivo do serviço, no caso, é gerar receitas para qualificar e reduzir os custos do sistema de transporte coletivo. Após a sanção, foi editado um decreto em 18 de janeiro de 2023, e aguarda-se um edital para definir o parceiro privado que vai operar o serviço.
A movimentação de Prefeituras e Executivos estaduais tem sido fomentada ante o resultado do julgamento das ADPFs (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental — de nº 492 e 493, julgada em 2020, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a competência para legislar sobre loterias é exclusiva da União, mas que a competência materiais, para instituir loterias, é caso de competência concorrente com estados e municípios. Podemos registrar também que o fato de a União operar com serviços de loterias não o torna mais legítimo do que sendo proporcionado por qualquer outro ente federado.
A resistência da União em aceitar esse estado de coisas não tem relação alguma como o bem estar da população, mas sim um nítido interesse pelo domínio de mercado, o qual ela não pretende compartilhar com particulares, nem com entidades estatais outras. Esse é um cenário de quase oitenta anos com contínuas restrições ou dificuldades, se considerarmos como marco histórico a proibição de cassinos no Brasil.
A União, no caso, defendia seu “absolutismo lotérico” com supedâneo no Decreto-lei nº204/1967, o qual, segundo o ministro Gilmar Mendes, “criou uma verdadeira ilha normativa”, gerando um monopólio fictício da União, que não é albergado pela Constituição de 1988.
A lista de municípios e estados que começam implementar os meios jurídicos e materiais para criação de sua lotéricas é grande, sendo um caminho sem volta, ao menos por enquanto. O Rio Grande do Sul, por exemplo, já deteve uma loteria estadual, cujo funcionamento encerrara-se em 2004, por ser deficitária, mesmo operando há 150 anos. Em 26 de outubro de 2021, o governador gaúcho em exercício editou um decreto criando um conselho gestor para ressuscitar a Loteria do Estado do Rio Grande do Sul, estimulado pelo resultado advindo do STF.
Evidentemente, que as loterias estatais e municipais vão acabar brigando por espaço com as loterias federais e com os sistemas de apostas permitidos. É um ambiente de mercado, de concorrência, onde nenhum parceiro pretende auxiliar o outro, sendo essencial investimentos na área de publicidade, vendas, etc., como qualquer outra atividade mercantil.
A questão que se indaga é: municípios e estados tornam-se fornecedores acerca do serviço de loterias? No âmbito federal, não pesam dúvidas de que a Caixa Econômica atrai para si a incidência do CDC, sendo ela o representante federal nesse sentido, e não propriamente a União.
Não temos dúvidas de que o apostador é considerado como consumidor, sendo seu status como tal bastante condizente com a tipicidade do artigo 2º, caput do CDC: “Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”. O mesmo está adquirindo e pagando por um serviço de resultado aleatório. O serviço, no caso, é inerente ao lazer. Não se trata de um investimento com certeza de retorno. Aliás, o resultado positivo é algo raro ou remoto de ocorrer em jogos lotéricos. E como consumidor, a vulnerabilidade é sua característica principal, como aponta o artigo 4º, inciso I do diploma consumerista brasileiro.
Acerva de vícios do serviço, o artigo 20 do CDC, enquadra como fornecedores todos aqueles que participaram da relação de consumo, da cadeia de fornecimento, com maior ou menor intensidade, garantindo-se a solidariedade destes frente aos danos gerados ao consumidor. E a artigo 14, caput, apresenta a mesma perspectiva no que concerne aos defeitos do serviço.
Ora, se o consumidor, num emaranhado de possibilidades, que vão desde o jogo ilegal ao jogo do Estado, optar pela loteria municipal ou estadual, ele não perde esse status jurídico de vulnerável, e devem lhe ser garantidas as mesmas prerrogativas que teria contratando com empresa privada. O jogo e aposta é um contrato, e como tal, está fadado a cumprir uma função social. De um lado, proporciona divertimento, lazer, e de outro, garante lucro à atividade empresarial organizada que o fornece. Com muita sorte, e não azar, quem sabe o consumidor pode ainda até ficar rico, embora esse resultado não possa ser garantido, mas se o for, o fornecedor estará obrigado a entregar o que prometeu (artigo 30 do CDC).
Ao descrever que pode ser tratado como fornecedor, o artigo 3° do CDC destaca, entre outros, a pessoa jurídica pública, bastando que desenvolva atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. Conforme salientam Cláudio Bonatto e Valério Dal Pai Moraes, o Estado moderno assumiu várias funções, não só na área social, como também na esfera econômica, chegando a realizar determinadas atividades naturalmente empresariais em nível de concorrência com outros profissionais, fornecedores de produtos e serviços (vide, por exemplo, o caso dos bancos estatais, como Caixa, Banco do Brasil, etc.), passando, nestes casos, a buscar o lucro como resultado da atividade mercantil. Neste aspecto, quando assim age, o Estado, ou melhor, as empresas das quais ele participa, passa a se sujeitar às regras do CDC.
No CDC, há referências diretas acerca dos serviços públicos como é o caso dos seguintes dispositivos: 3º, caput, 4º, inciso VII, 6º, inciso X, artigo 22, caput entre outros.
Algo que resta bem nítido é que o jogo de aposta não é um serviço essencial do qual necessite o cidadão para acessar uma vida digna. Por outro lado, como momento de lazer, pode proporcionar momentos de alegrias, como também de forte decepção, se o intuito for enriquecer às custas do jogo. Tal prerrogativa acaba sendo absorvida por quem promove o jogo, e não por quem o consome.
Possivelmente, municípios e estados busquem parceiros privados com melhores condições de gerenciamento da atividade mercantil de venda de jogos e apostas. Mas a sua presença, nesse âmbito de serviço não essencial, gerando uma expectativa de controle mais intenso, é um atrativo que deve ser honrado. E sendo o CDC a melhor plataforma de proteção de direitos os jogadores-consumidores, podemos dizer tranquilamente que o Estado fornecedor de jogos, direta ou indiretamente, comprou seu ingresso para o mundo do Direito de Proteção do Consumidor.
O tema é recente, e se espera que o mesmo sirva para fortalecer o nível de proteção de consumidores, e não o contrário. Nesse sentido, cumprimenta-se o legislador de Porto Alegre, que ao criar a norma permissiva, assinalou a necessária observação das regras que compõe o CDC. Que sirva de exemplos a outros.