A regulamentação das apostas esportivas no Brasil foi um dos assuntos mais debatidos nos últimos 4 anos, com a indústria iGaming acompanhando de perto os desdobramentos da tramitação governamental neste período.
A modalidade foi aprovada no país em 2018 – na gestão do então presidente da República Michel Temer – e tinha um prazo estabelecido para a regulamentação de até dois anos, estendido por mais dois. Quatro anos se passaram e pauta permaneceu inerte nas mãos do governo anterior.
O Valor Econômico publicou recentemente um artigo que explora os possíveis motivos dessa inércia na regulamentação das apostas esportivas, relatando algumas questões incongruentes e ressaltando a grande oportunidade que o Brasil perdeu de ter mais uma fonte de receita em favor da sociedade.
Confira abaixo a matéria sobre a regulamentação das apostas esportivas
Muito se tem falado do decurso do prazo para regulamentação das apostas esportivas (apostas de quota fixa, na previsão legal), conforme determinado pela Lei nº 13.756/2018. Caracterizadas pelo legislador como um serviço público, as apostas de quota fixa foram criadas pelo artigo 29 da mencionada lei, que, em seu parágrafo 3º, estabelece o prazo de dois anos, prorrogáveis por mais dois, para a sua regulamentação.
Esse prazo se encerrou no último dia 13 de dezembro, a despeito de informações de que o decreto responsável pela regulamentação já estaria pronto, aguardando tão somente a assinatura pelo presidente da República anterior.
As razões para essa omissão – agora, já sedimentada, tendo em vista o término do mandato sem que o decreto fosse assinado – já foram suficientemente discutidas, indo desde um pedido da bancada evangélica até à inércia genérica que se abateu na presidência entre o término do pleito eleitoral e o final do mandato. Fato é que o descumprimento do prazo legal resultou em problemas muito maiores para o antigo mandatário do que a perda de arrecadação e o incentivo à informalidade – por si sós, questões já igualmente relevantes.
Há, de início, a sujeição do presidente da República à prática de crime de responsabilidade, conforme a Lei nº 1.079/1950, que, em seu artigo 9º, afirma haver crime de responsabilidade quando o presidente da República “omitir ou retardar dolosamente a publicação das leis e resoluções do Poder Legislativo ou dos atos do Poder Executivo”.
Como há expressa ordem legal para que o Poder Executivo regulamente o dispositivo legal, com prazo específico para tanto, é nítida a situação tipificada como crime de responsabilidade. E mais, é clara a ausência de justificativa plausível para a omissão normativa, tanto mais quando já transcorridos quatro anos e, tanto pior, quando se tem notícia da existência do ato normativo pronto e acabado, restando apenas a sua assinatura pelo presidente.
Vale dizer que os ministros de Estado envolvidos – o da Economia, à época, especialmente – também respondem conjuntamente com o presidente pelo crime de responsabilidade. Isso fica claro na redação do artigo 13 da Lei nº 1.079/1950, que responsabiliza os ministros de Estado pelos atos que lhes cabem concomitantemente com a Presidência. Não fosse pela competência temática, a própria lei de apostas de quota fixa atribui diretamente ao Ministério da Economia a responsabilidade pela regulamentação.
Além do crime de responsabilidade, as autoridades envolvidas na omissão regulatória ainda podem ficar sujeitas à ação de improbidade administrativa. Como a falta de regulamentação – por omissão – resulta na perda de arrecadação, há nítida perda de receita, com prejuízo ao erário.
Nesses termos, é bastante factível a possibilidade de enquadrar a inércia presidencial – e ministerial – no artigo 10 da Lei de Improbidade Administrativa. De fato, o dispositivo predica ser ato de improbidade “qualquer ação ou omissão dolosa” que “causa lesão ao erário”. Aqui, vale dizer que o rol de situações referido no artigo não é taxativo, tendo em conta o emprego do “notadamente” ao término do caput. Tanto é assim que, mesmo com o advento da Lei nº 14.230/2021, que introduziu mudanças na Lei de Improbidade, não se alterou o caráter exemplificativo do rol do artigo 10, o mesmo não ocorrendo com o artigo 11, que passou a contar com hipóteses exaustivas.
A par da eventual responsabilização, a omissão na regulamentação frustra a prestação de um serviço público. Afinal, a própria Lei nº 13.756/2018 atribuiu às apostas de quota fixa a condição de serviço público, o que demonstra o especial interesse na sua prestação. Ainda que discutível, é possível compreender a opção legislativa, a partir da relevância em se regulamentar esse serviço, de modo a estabelecer mecanismos de proteção ao apostador, evitando os riscos de informalidade. Além disso, são recorrentes os episódios de fraudes esportivas, por meio do arranjo prévio de resultados e, enfim, as apostas feitas de modo desregulamentado poderiam servir como artífice para fins escusos, notadamente para lavagem de dinheiro.
Num cenário de escassez e necessidade de ajustes fiscais, é difícil compreender a omissão do governo anterior em regulamentar uma fonte de recursos que já é prevista em lei. Vale lembrar que a necessidade de equacionar as contas públicas foi um discurso recorrente do Ministério da Economia, ao longo dos quatro anos de mandato. Na conjuntura atual, nem sequer é crível supor ilegalidade ou inadequação das apostas de quota fixa, eis que possuem amparo legal e, tanto mais, foram consideradas um serviço público. A edição do decreto, caso houvesse sido feita, seria um último ato pelo qual o presidente poderia, ao menos, vangloriar-se pelos benefícios trazidos com a regulamentação.
Assim, contudo, não o fez. E o tema permanece pendente, graças a um desgracioso delito da inércia (parafraseando Eça de Queiroz). Afinal, criou para o anterior presidente da República e o seu ministro da Economia o risco de sujeição às sanções da Lei dos Crimes de Responsabilidade e da Lei de Improbidade Administrativa.
No novo governo, a expectativa é de que a omissão seja finalmente saneada, quando menos por se saber que a nova administração acaba de editar uma série de medidas normativas voltadas, justamente, à melhoria nos gastos públicos. Razoável supor que essa atenção também se volte ao aumento de arrecadação, algo para o qual a regulamentação das apostas esportivas pode contribuir sensivelmente.