De uma maneira geral, a população brasileira é adepta de algum tipo de jogo. A prova disto é o aumento da arrecadação dos serviços lotéricos da Caixa Econômica Federal em 2020, que aumentou 2,35% em comparação com 2019 e atingiu o maior patamar da história: 17,1 bilhões de reais. E a quantia total repassada para os prêmios ficou em R$ 5,9 bilhões.
Além disso, a sociedade e o mercado internacional acompanham o processo de regulamentação das apostas esportivas, que deve ser finalizado ainda neste ano, bem como a discussão sobre a legalização do setor de jogos no país como uma alternativa para a retomada da economia duramente impactada pela pandemia de COVID-19.
E, conforme o artigo publicado por Rafael Costa Monteiro na plataforma JusBrasil, no dia 18 de abril, há várias modalidades de jogo, como bingos, concursos e ações promocionais que distribuem prêmios e brindes.
O problema surge quando as normas não são devidamente claras, ou quando o participante se sente injustiçado por algo que não se limita ao seu “azar” no momento do jogo. Confira o texto completo a seguir!
A sorte está lançada: os conflitos sobre premiações e sorteios na jurisprudência do STJ
A regulamentação de loterias no Brasil é de responsabilidade do Ministério da Economia, que tem a atribuição legal de autorizar, supervisionar, fiscalizar e regular esses serviços. Além de uma oportunidade individual para melhorar de vida, os sorteios trazem benefícios coletivos, pois, segundo a Constituição, suas receitas reforçam o financiamento da seguridade social.
Enquanto se discute nos meios políticos a legalização dos jogos de azar no Brasil, as loterias oficiais batem recorde. No ano passado, a arrecadação global das loterias administradas pela Caixa Econômica Federal (CEF) cresceu 2,35% em relação a 2019 e chegou ao seu maior nível em toda a história: R$ 17,1 bilhões. Segundo dados da própria CEF, R$ 8,05 bilhões foram repassados para gastos sociais. O valor total dos prêmios distribuídos passou de R$ 5,9 bilhões.
O brasileiro gosta de apostas e sorteios. Além das loterias, há jogos de todo tipo, bingos, investimentos em títulos de capitalização, promoções e concursos que distribuem prêmios. Mas quando as regras do jogo não são claras, ou o jogador se sente frustrado por algo mais do que a simples falta de sorte, o conflito pode resultar em processo e se somar às muitas questões estampadas na jurisprudência sobre loterias do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Falta de clareza
Ao julgar o REsp 1.740.997, a Terceira Turma manteve decisão da Justiça do Ceará que condenou a Liderança Capitalização, responsável pelo título de capitalização Telesena, a pagar o equivalente a R$ 60 mil a um consumidor que comprou um título e, ao raspar o local de premiação instantânea – modalidade conhecida como raspadinha –, encontrou três frases idênticas que afirmavam ser ele o ganhador de um prêmio de R$ 5 mil por mês, durante um ano.
Segundo o apostador, a empresa se negou a lhe pagar o prêmio alegando que o título premiado deveria trazer três valores iguais – como informado no próprio título – e ainda a expressão “ligue 0800…” – conforme previsto nas condições gerais do concurso.
O relator, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, destacou que, antes da entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor (CDC), o comum, quando a pessoa pretendia celebrar um contrato, expondo-se à oferta existente no mercado, era procurar, ela mesma, a informação necessária, suficiente e segura a respeito do bem ou serviço que desejava adquirir.
Entretanto, após a edição do CDC, o qual adotou um modelo de transparência nas relações de consumo, passou-se a exigir clareza na informação no período pré-contratual acerca do negócio a ser celebrado.
“Ante a indevida colidência de informações constantes em destaque no título, no sentido de que três valores iguais seriam suficientes para o pagamento do prêmio, e aquelas constantes nas cláusulas gerais, de que seria necessária, além dos três valores iguais, a frase ‘ligue 0800…’, há de prevalecer, sempre, a interpretação mais favorável ao consumidor, na forma do artigo 47 do CDC”, afirmou o relator.
Sanseverino considerou a impressão do título uma verdadeira “pegadinha” para o consumidor e ponderou não ser aceitável que se oficialize a chicana contra aquele que tem sua proteção constitucional reconhecida.
Danos morais coletivos
Em 2016, no REsp 1.438.815, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, a Terceira Turma decidiu que, embora seja ilícita a exploração de máquinas de jogos eletrônicos, caça-níqueis, bingos e similares, por caracterizar prática contravencional descrita no artigo 50 da Lei de Contravencoes Penais, tal atividade, por si só, não gera danos morais coletivos.
A decisão teve origem em ação do Ministério Público Federal (MPF) contra uma associação cultural e esportiva responsável pela organização do sorteio de 16 motos, com cartela a ser adquirida por R$ 15. O MPF sustentou não ser permitida ao particular a exploração de jogos de azar e requereu que a entidade fosse condenada a se abster de tais sorteios, além de pagar danos morais coletivos.
Embora argumentasse que não se tratava de jogo de azar, mas de simples sorteio de prêmios, a associação foi condenada a pagar R$ 15 mil por danos morais coletivos.
Ao proferir seu voto, Nancy Andrighi lembrou que o STJ já se pronunciou em mais de uma oportunidade quanto à ilegalidade da prática de jogos de azar e assemelhados. No entanto, ela observou que, conforme a jurisprudência, o dano moral coletivo “corresponde a uma lesão na esfera extrapatrimonial de uma comunidade, em razão da violação de direito transindividual de ordem coletiva, capaz de causar abalo negativo na moral da coletividade”.
No caso analisado, a relatora entendeu que não houve desgosto ou sofrimento capaz de afetar a dignidade do consumidor e afastou a obrigação de indenizar. “Não é o cometimento de qualquer ilegalidade que é capaz de ensejar dano moral coletivo, mas apenas aquela que, em razão de sua repercussão social, é capaz de provocar profundo abalo negativo na moral de determinada comunidade”, declarou.
Natal premiado
Ao jugar o AgInt no REsp 1.591.336, a Terceira Turma manteve decisao do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) que condenou uma associação comercial a indenizar uma participante de promoção de Natal que foi contemplada publicamente com um veículo 0 Km após erro no sorteio e, posteriormente, impedida de resgatar o prêmio.
O relator do processo, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, destacou que negar à participante o direito de receber o prêmio, conforme compromisso público assumido inclusive pelo presidente da associação organizadora do sorteio, importaria em “ofensa ao princípio da boa-fé objetiva”.
Segundo os autos, o bilhete da promoção previa que a ordem dos sorteios seria decrescente, iniciando-se pelo 48º prêmio até chegar ao 1º. Seriam sorteados 47 prêmios em dinheiro, no valor de R$ 500, e um carro 0 km. Ocorre que, durante o sorteio, acidentalmente foram sorteados 48 prêmios de R$ 500 mais o veículo, o que fez com que o prêmio principal fosse atribuído à 49º sorteada.
Ao tentar receber o carro, a pessoa anunciada como ganhadora ouviu a alegação de que fora publicada errata com a correção do vencedor, o qual seria o 48ª sorteado, como previsto no bilhete. Ela então ajuizou ação para garantir seu direito ao carro e pediu danos morais.
O TJPR determinou que a associação pagasse à autora da ação o valor do carro e os danos morais. O ministro Sanseverino observou que, segundo os fatos reconhecidos pelas instâncias ordinárias, logo após constatado o equívoco no sorteio, o próprio presidente da associação comercial declarou publicamente que seriam 48 prêmios de 500 e mais o carro, “se comprometendo, em nome da entidade, a contemplar a 49ª pessoa com o veículo”.
Valendo R$ 1 milhão
A Quarta Turma, ao julgar o REsp 788.459, acolheu pedido da BF Utilidades Domésticas Ltda., empresa do Grupo Silvio Santos, para reduzir a indenização concedida pela Justiça da Bahia a uma participante do programa de TV “Show do Milhão” – concurso de perguntas e repostas sobre conhecimentos gerais, com prêmio máximo de R$ 1 milhão em barras de ouro.
Segundo relatado pela participante, ela obteve êxito nas respostas às questões, exceto na última, chamada “pergunta do milhão”, à qual não quis responder para salvaguardar a premiação já acumulada até aquele ponto, de R$ 500 mil. Se desse resposta errada à última questão, perderia todo o valor já ganho.
Porém, ela alegou que a organização agiu de má-fé na elaboração da questão, que não possuía resposta correta, e pleiteou o pagamento de danos morais. Nas instâncias ordinárias, a empresa foi condenada a pagar R$ 500 mil – valor que, somado aos R$ 500 mil recebidos no programa, totalizava o prêmio máximo.
O relator no STJ, ministro Fernando Gonçalves (aposentado), afirmou que, como as instâncias ordinárias concluíram que a participante deixou de responder à última questão em virtude da inviabilidade lógica de uma resposta adequada, era cabível a indenização da chance perdida.
Todavia, ele ressaltou que não seria possível prever que o normal andamento dos fatos conduziria ao acerto da questão. “Falta, assim, pressuposto essencial à condenação da recorrente no pagamento da integralidade do valor que ganharia a recorrida caso obtivesse êxito na pergunta final, qual seja, a certeza – ou a probabilidade objetiva – do acréscimo patrimonial apto a qualificar o lucro cessante”, avaliou.
A turma decidiu reduzir a indenização para R$ 125 mil, considerando que esse valor traduziria melhor a oportunidade perdida, pelo fato de a questão possuir quatro alternativas.
Dívida de jogo
No REsp 1.628.974, julgado em 2017, a Terceira Turma decidiu que a cobrança de dívida de jogo contraída em países onde essa atividade é legal pode ser feita por meio de ação ajuizada pelo credor no Brasil.
Ao analisar o caso de uma dívida superior a US$ 1 milhão que teria sido feita por um brasileiro em torneio de pôquer em cassino de Las Vegas, nos Estados Unidos, a turma definiu que a cobrança é juridicamente possível, desde que provado que o jogo é legal no local onde foi praticado.
O relator, Villas Bôas Cueva, explicou que a cobrança só seria impossível caso ofendesse a soberania nacional ou a ordem pública, o que não ficou configurado no caso.
“Não ofende a soberania nacional a cobrança de dívida de jogo, visto que a concessão de validade a negócio jurídico realizado no estrangeiro não retira o poder do Estado em seu território, nem cria nenhuma forma de dependência ou subordinação a outros Estados soberanos”, resumiu o ministro.
Villas Bôas Cueva afirmou ser delicada a análise a respeito de ofensa à ordem pública, alegação que, se fosse aceita, inviabilizaria a cobrança. O relator destacou que diversos tipos de jogos são permitidos no Brasil, como loterias e raspadinhas; assim, é razoável a cobrança relacionada a um jogo regulamentado no local em que os fatos ocorreram.
“Há, portanto, equivalência entre a lei estrangeira e o direito brasileiro, pois ambos permitem determinados jogos de azar, supervisionados pelo Estado, sendo, quanto a esses, admitida a cobrança. Não se vislumbra, assim, resultado incompatível com a ordem pública”, frisou o ministro.