Dando sequência à série de entrevistas para o site “Tribuna da Imprensa Livre” focada na discussão sobre a legalização do jogo no Brasil, o jornalista Luiz Carlos Prestes Filho conversou com o advogado Frederico Lemos. O entrevistado é conhecido por atuar no ramo de direito empresarial e propriedade intelectual.
Durante a conversa, Lemos declarou que a implementação de cassinos e bingos acontece em complexos de turismo e lazer visando que esse setor de apostas também alavanque outras práticas e serviços com abertura de vagas de trabalho e geração de renda.
Além disso, ele pontuou que os setores artísticos, musical, dança, artes visuais, gráficas e danças seriam significativamente beneficiados com a volta desses estabelecimentos no território nacional.
“A regulamentação do setor deve necessariamente prever em seu contexto a criação de estruturas mais amplas visando o desenvolvimento do turismo local e de atividades ligadas aos setores de cultura e entretenimento”, declarou o advogado.
Confira a entrevista com Frederico Lemos
Luiz Carlos Prestes Filho: Cassinos, entretenimento, lazer e música a relação é histórica no Brasil?
Frederico Lemos: Sem dúvida alguma. A época dourada dos cassinos no Brasil está intimamente ligada ao lazer e ao entretenimento. O desenvolvimento econômico das cidades que abrigavam cassinos no Brasil tinha como força motriz o investimento e os negócios que gravitavam ao seu redor. Durante o curto período de legalidade, entre as décadas de 1930 e 1940, os cassinos se proliferaram pelo Brasil gerando emprego e renda, fomentando o turismo nacional e atraindo turistas estrangeiros.
Como a maioria estava instalada em hotéis de luxo, era comum o trânsito de personalidades, políticos, artistas e celebridades internacionais. Este é um período marcado por grandes espetáculos e atrações musicais, dentre as quais a inesquecível Carmen Miranda que se apresentou por diversos cassinos pelo Brasil.
Entretenimento, lazer e música fazem parte da cadeia produtiva dos cassinos e fonte de geração de emprego, renda e arrecadação tributária. A história da presença dos cassinos no Brasil nos deixou esse legado de desenvolvimento sociocultural e econômico.
Luiz Carlos Prestes Filho: Seria importante, com a regulamentação de cassinos e bingos no Brasil, valorizar as atividades artísticas e dentro dos estabelecimentos?
Frederico Lemos: Creio ser importante seguir modelos de regulamentação de mercados mais maduros em que a instalação de cassinos e bingos necessariamente comporta em contrapartidas para a cidade e a população local. Assim sendo, a criação de cassinos e bingos ocorre dentro de complexos turísticos e de entretenimento de modo que a atividade principal voltada aos jogos de apostas também envolva outras atividades e serviços geradoras de empregos e renda.
É neste contexto de oportunidades que se destacam as atividades artísticas, das mais variadas, desde apresentações musicais, espetáculos de dança a exposições de artes gráficas e visuais. A regulamentação do setor deve necessariamente prever em seu contexto a criação de estruturas mais amplas visando o desenvolvimento do turismo local e de atividades ligadas aos setores de cultura e entretenimento, aumentando com isso os elos da cadeia produtiva dos jogos de apostas para abarcar outras atividades que garantirão a sustentabilidade do setor e da economia local.
Vejamos o exemplo do Casino Iguazu, localizado na cidade portenha de Puerto Iguazu, a poucos metros da fronteira com o Brasil, à caminho do complexo turístico das cataratas do Iguaçu do lado argentino, concentrando grande fluxo de turistas da tríplice fronteira (Brasil, Argentina e Paraguai) que trafegam pelo local.
Não à toa, a Argentina concentra mais da metade das receitas de jogos de apostas da América Latina. Este é um exemplo a ser seguido e com enorme potencial de crescimento visto que a diversidade cultural, artística e ambiental do Brasil são elementos que agregam grande valor para o desenvolvimento econômico.
Luiz Carlos Prestes Filho: O conteúdo musical brasileiro deveria ter prioridade nos cassinos e bingos?
Frederico Lemos: Na minha visão a resposta a esta pergunta está necessariamente atrelada à temática de entretenimento planejada por cada estabelecimento. Quero dizer com isso que cassinos e bingos geram grandes oportunidades de valor agregado que vão muito além do jogo de apostas. Essas oportunidades vão desde o projeto de arquitetura e decoração, passando pelo licenciamento de direitos de conteúdo de entretenimento nas máquinas de apostas, até a escolha da ambientação musical e das atrações ao vivo.
Pensemos em um cenário hipotético de instalação de um complexo hoteleiro com um cassino do lado brasileiro da tríplice fronteira de Foz do Iguaçu. Imaginemos que o cassino vai explorar a temática local com ênfase na natureza, na flora e na fauna da região, ressaltando a importância das questões relacionadas à sustentabilidade e da biodiversidade. É de se imaginar que a arquitetura, a decoração e as obras artísticas que circulam dentro deste estabelecimento estejam em consonância com e temática escolhida.
Por isso creio que o conteúdo artístico brasileiro terá prioridade natural em cassinos e bingos, pela questão do maior valor agregado que confere ao empreendimento. Contudo, é indispensável que as políticas de regulação e fiscalização assegurem a igualdade do acesso a todos os interessados em associar o seu conteúdo aos bingos e cassinos. É dizer que ao artista independente, aos coletivos comunitários e às associações de artistas devem ser garantidos os mesmos direitos de acesso que aos grandes grupos e conglomerados econômicos.
No exemplo mencionado acima, difícil seria imaginar um cassino construído às margens das Cataratas do Iguaçu, à imagem e semelhança dos existentes em Las Vegas com temática dos filmes de Hollywood. Contudo, esse risco é real em um cenário sem acesso ao produto nacional.
Luiz Carlos Prestes Filho: Seria importante ter uma reserva de mercado para artistas brasileiros nestes estabelecimentos?
Frederico Lemos: Essa é uma questão interessante para a qual não há uma resposta fácil. As questões relacionadas às políticas de reserva de mercado devem ser analisadas caso a caso de acordo com o setor e o contexto em que se enquadram.
Podemos citar as experiências brasileiras nos setores de informática e automotivo nas décadas de 1970 e 1980. As políticas de reserva de mercado estão fundamentadas na proteção e no desenvolvimento da indústria e do produto nacional e devem ser lançadas em setores de desenvolvimento incipiente ou de claro desequilíbrio de forças no domínio econômico.
A nossa experiência nestes dois setores industriais não foi das melhores e a reversão desta política no início da década de 1990, com a abertura dos mercados resultou em maior crescimento, competitividade e qualidade dos produtos ofertados ao consumidor, porém com o comprometimento de uma política de crescimento sustentável, transformando o Brasil em mero mercado consumidor de produtos importados.
Há evidentemente um grande risco associado à radicalização tanto das políticas protecionistas quanto das políticas de liberalização econômica. Os extremos são perigosos e devem ser evitados. No exemplo citado o Brasil passou de um extremo ao outro sem atingir o equilíbrio desejado.
Façamos um paralelo entre Brasil e Coreia do Sul, que na década de 1980 tinham índices similares de desenvolvimento humano. Enquanto o Brasil apostou em políticas liberais agressivas de abertura de mercado voltadas para a expansão do consumo, a Coreia do Sul investiu pesado em educação e nas indústrias primária e de transformação.
O que vemos quarenta anos depois é que o Brasil continua um gigante na exportação de insumos e commodities, cujo resultado atingido é de pouco mais de 1% da fatia do comércio global, enquanto a Coreia do Sul se transformou em uma potência em diversos setores globais como em tecnologia e automobilismo, sendo o quinto maior exportador mundial. No que diz respeito ao setor artístico é inegável a qualidade e a aceitação da produção cultural brasileira no mercado interno.
O Brasil é um dos poucos territórios em que a música nacional é mais executada do que a música estrangeira. A relação do brasileiro com a sua música é histórica, diversificada e rica. Logo, não há que se pensar em reserva de mercado para o artista brasileiro.
A produção artística no Brasil é abundante e o mercado maduro. As políticas de incentivo, por sua vez, devem ser focadas na capacitação de gestores, de projetos e de carreiras, e na criação de canais próprios de financiamento que assegurem a oxigenação e a sustentabilidade da cadeia produtiva.
Por último, gostaria de destacar que ao Estado compete assegurar um ambiente de negócios saudável e competitivo, o que lhe permite intervir no domínio econômico para corrigir eventuais abusos e distorções gerados pela concentração do poder econômico em pequenos grupos que possam inibir a competição e impedir o acesso do artista brasileiro independente às novas oportunidades de negócio.
Creio eu ser este um dos maiores desafios para o artista brasileiro em um eventual cenário de investimentos vultosos na instalação de cassinos e bingos em grandes complexos de entretenimento e turismo pelo país.
Luiz Carlos Prestes Filho: Em Las Vegas, Macau, Monte Carlo, Punta do Leste e em Estoril as atividades artísticas tem um papel importante. Como seria no Brasil. Festas como o carnaval e festas juninas poderiam fazer parte do calendário/imaginário de cada estabelecimento?
Frederico Lemos: Em qualquer setor da economia o produto e o serviço de maior valor agregado conferem maior retorno de investimento. Não é à toa que em sua esmagadora maioria os estabelecimentos de apostas de jogos estão localizados dentro de complexos hoteleiros e de entretenimento. A simples aposta em jogos tem determinado valor, mas a aposta em jogos em um ambiente aonde o cliente consome outros produtos e serviços tem um valor agregado muito maior.
Podemos citar dezenas de outras festividades e de expressões culturais e folclóricas brasileiras que podem fazer companhia às atrações de festas juninas e de carnaval nesses estabelecimentos. O brasileiro é um povo que produz e que consome a sua produção cultural. Mas não nos esqueçamos dos turistas estrangeiros, verdadeiros admiradores e ávidos consumidores da nossa produção cultural.
O estrangeiro que vem ao Brasil quer conhecer a nossa cultura, a nossa gastronomia, as nossas belezas naturais. Por isso, acredito eu, um empreendimento montado à imagem e semelhança de cassinos de Las Vegas, Macau e outras localidades não atingiria todo o seu potencial.
Luiz Carlos Prestes Filho: As plataformas nacionais de jogos de cassinos e bingos eletrônicos poderiam dar potência para divulgar a música brasileira? O conteúdo nacional teria mais espaço no mundo?
Frederico Lemos: A meu ver as plataformas digitais são muito diferentes dos espaços físicos de cassinos e bingos. Os cassinos e bingos tradicionais são verdadeiros centros de entretenimento, que além das apostas oferecem outras gamas de produtos e serviços aos seus clientes. O seu público é formado não apenas de jogadores, mas de pessoas que buscam novas opções de entretenimento.
Já as plataformas virtuais são voltadas somente aos jogos de apostas e por isso mesmo tem como seu público alvo jogadores focados nas apostas. Não vejo as plataformas de jogos eletrônicos como espaços de divulgação da música ou de qualquer outra forma de expressão artística.
Há, por outro lado, a possibilidade de investimentos de marketing e de publicidade de plataformas de jogos de apostas em canais digitais artísticos, nos moldes como algumas plataformas de apostas esportivas estão atualmente investindo em clubes de futebol no Brasil e pelo mundo.
Embora não haja uma correlação clara entre o conteúdo artístico e os jogos de apostas, é inegável que o setor artístico possui grande apelo popular e por isso mesmo é um interessante canal de divulgação de produtos e serviços para determinado público alvo.
Luiz Carlos Prestes Filho: Será que as universidades brasileiras poderiam aproveitar os cursos de matemática e computação, design e música para realizar pesquisas sobre softwares para a indústria de jogos?
Frederico Lemos: Inteligência nunca é demais. A inteligência é um dos grandes ativos intangíveis ao lado de marcas, patentes, direito de autor e processos inovadores. O capital intelectual é inesgotável e as empresas deveriam cada vez mais investir na capacitação do seu recurso humano e no desenvolvimento da inteligência empresarial. A universidade é um parceiro estratégico de todo projeto empreendedor, ofertando capital intelectual, mão de obra qualificada e soluções inovadoras.
Acredito que a universidade tenha muito mais a oferecer do que apenas as questões relacionadas ao software. É evidente que o desenvolvimento nacional de programas para os jogos é questão estratégica e geradora de riqueza na medida em que a propriedade intelectual é um ativo empresarial. Investir no desenvolvimento de software nacional é ter visão de futuro e de retorno empresarial.
O software produzido no Brasil é customizado para a realidade nacional e para as necessidades do empreendedor brasileiro. Mas proponho um passo além. A elaboração de uma solução que envolva não apenas projetos estanques, mas de um projeto integrado em que a arquitetura, as instalações, o mobiliário e as soluções de tecnologia estejam em linha com uma agenda de preservação do meio ambiente, de sustentabilidade, de uso de energias renováveis e materiais recicláveis.
Nesta hipótese a universidade e suas incubadoras desempenhariam papel de protagonismo, de desenvolvimento de soluções inovadoras e de parceria estratégica com os empreendedores. Empreendimentos com essas características estariam perfeitamente integrados com a biodiversidade dos variados ecossistemas brasileiros, como por exemplo, na floresta amazônica, pantanal mato-grossense, serra gaúcha, mata atlântica, caatinga e cerrado.
Luiz Carlos Prestes Filho: Existe alguma preocupação nas sociedades autorais brasileiras e no ECAD com a possibilidade de abertura de cassinos e bingos? Existe arrecadação de conteúdo musical explorado nas plataformas digitais?
Frederico Lemos: Toda empresa ou negócio necessita de uma licença do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD) para usar de forma legal a música em seu estabelecimento ou empreendimento. O uso de música em espaços físicos e espaços virtuais está protegido pela legislação autoral.
Em seu sítio na internet o ECAD disponibiliza ao público informações sobre o uso legal da música, inclusive com a publicação do seu regulamento de arrecadação em que é possível conhecer os princípios e as regras de licenciamento de acordo com as características de cada estabelecimento ou empreendimento.
Salvo engano de minha parte, não há no regulamento do ECAD previsão expressa sobre a arrecadação de direitos autorais em bingos e cassinos, até porque ainda não há previsão legal de funcionamento desses estabelecimentos no território brasileiro.
Contudo, o ECAD e as associações estão sempre vigilantes quanto aos novos meios de utilização de música e de certo que, em havendo a aprovação de funcionamento destes estabelecimentos, os princípios e regras que norteiam o regulamento de arrecadação serão utilizados para o correto enquadramento dessas atividades de modo que seja realizado o correspondente licenciamento dos direitos, mediante a arrecadação e posterior distribuição dos direitos autorais aos seus respectivos titulares.
Sobre as plataformas digitais é importante salientar que estas também estão sujeitas ao licenciamento e ao pagamento dos direitos autorais. Entretanto, dado a sua natureza virtual e a inexistência de fronteiras físicas, há outros critérios de identificação do domicílio do provedor de serviços, podendo o licenciamento ser realizado por entidades de gestão coletiva de um ou mais países.